Projeto de caraterização arqueológica do sítio de naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz (1615) José Bettencourt -Arqueonova, Associação de Arqueologia e Defesa do Património
A 7 de Novembro de 1615 naufragou na costa do Faial, à entrada da enseada de Porto Pim, a nau capitania da armada da Carreira da Índia, Nossa Senhora da Luz. Foi o fim de uma atribulada viagem, iniciada em Goa a 9 de Fevereiro de 1615 e em que os problemas começaram pouco depois da saída. Dois dias após a partida, iniciada cerca de dois meses após o período normal de início da torna-viagem para o reino das armadas da carreira da Índia, as naus São Filipe e a Nossa Senhora da Luz arribaram ao porto de saída. A armada efectuou depois uma paragem em Angola, o que implicou a passagem tardia pelos Açores em inícios de Novembro, onde a São Filipe, que recebeu assistência ao largo da Terceira, se apartou da capitânia devido a um temporal e a Nossa Senhora da Luz acabou por se perder. Nos dias seguintes ao naufrágio, foram dar à praia parte da carga da embarcação e alguns dos corpos dos 150 tripulantes e passageiros mortos no acidente. Efectuou-se depois uma complexa operação de proteção, salvamento e tratamento da carga arrojada à praia ou visível no fundo da baía de Porto Pim, o que permitiu não só a recuperação de parte significativa dessa carga, constituída por tecidos, mobiliário, porcelana e pedras preciosas, bem como o salvamento da artilharia.
O sítio arqueológico foi redescoberto em 1999 por uma equipa do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS). Em 2002, no seguimento desta descoberta, a Arqueonova, associação de arqueologia e defesa do património, em parceria com o Museu Regional da Horta, deu início a um projeto plurianual de investigação que tem por objetivo, numa primeira fase, avaliar o potencial científico e patrimonial do sítio e, sequentemente, em colaboração com a Direção Regional da Cultura (DRaC), promover medidas de proteção e estudo dos vestígios. A primeira campanha deste projecto, desenvolvida em Setembro de 2002, contou com os apoios da Câmara Municipal da Horta, da DRaC, do Departamento de Oceanografia e Pescas (DOP), do CNANS, da Capitania do Porto da Horta, da Delegação de Educação Física e Desporto da ilha do Faial e da empresa Norberto Diver. A segunda campanha, de monitorização das condições gerais do sítio, foi efetuada em Dezembro de 2004 e contou, mais uma vez, com o apoio da empresa Noberto Diver.
Os trabalhos até agora efetuados permitiram delimitar a área ocupada pelos vestígios do naufrágio. O sítio arqueológico situa-se na costa Sul do Faial, à entrada da baía de Porto Pim, ocupando o principal depósito uma zona a Sudeste da cintura de rochedos que se desenvolve para Sul do Portinho do Alcaide. Neste setor, a natureza dos fundos é irregular, variando entre a rocha e depósitos de areia, com uma profundidade entre os – 6 e – 8 m em relação ao zero hidrográfico.
O principal depósito arqueológico, situado a Sul/Sudeste de um setor formado por fundos de areia com 50 m de comprimento e 20 de largura, apresenta uma área concrecionada, descontínua, com mais de 20 m de comprimento. Nessas concreções foi possível observar fragmentos de porcelana, peças em bronze e pedras de lastro, ligadas durante o processo de estabilização do ferro. Entre estes artefatos conta-se uma chumaceira, elemento que servia de reforço das peças de poleame de laborar com maiores dimensões e sujeitas a maiores esforços. Fabricada em liga de cobre, esta mede 19,5 cm x 17,5 cm e apresenta ao centro um orifício circular com 9 cm de diâmetro, destinado ao eixo ou perno da roda.
A maioria dos artefatos localizados, dispersos numa extensão de cerca de 80 m no sentido Oeste/Este e 60 m no sentido Sul/Norte, situa-se na periferia do depósito supracitado. Foram recuperados fragmentos de porcelana chinesa “azul e branca” (pratos, taças, garrafas e potes), conhecidas como “kraak-porselein”, fabricadas nas oficinas de Jingdezhen. A temática decorativa varia entre motivos simbólicos, geométricos e gamos ou pássaros inseridos em paisagens.Identificaram-se também fragmentos de potes fabricados em grés, correspondentes a produções chinesas e birmanesas (martabans) e ainda uma porção de parede com decoração em relevo, identificada como parte de um pote “Tradescant”.Peças semelhantes foram recuperadas em diversos sítios de naufrágio contemporâneos, relacionados com as rotas que ligavam o continente europeu ao Oriente - na nau portuguesa Nossa Senhora dos Mártires - 1605, no navio espanhol San Diego - 1600 enos navios da VOC Mauritius -1609, Banda - 1615e Whitte Leeuw - 1613.
Foram ainda recolhidas duas contas de vidro, um almofariz em liga de cobre, um botão em pedra e conchas da espécie ypraea moneta (cauris). Estas últimas foram largamente utilizadas com funções monetárias por diversas culturas Asiáticas e Africanas, o que explica a sua procura pelos portugueses desde o século XV e o seu transporte nas naus da carreira da Índia. Oriundos sobretudo de Socotorá e Maldivas, os cauris eram transportados para África ou Lisboa, de onde eram depois distribuídos pelo Império. O historiador português do Século XVI, João de Barros, refere que as Naus da Índia, na torna-viagem, chegavam a carregar nas Maldivas 2 000 a 3 000 quintais de cauris como lastro.
Não menos significativo foi a identificação do lastro do navio, disperso em torno do depósito principal do sítio. As amostras recuperadas em 2002 foram identificadas como seixos de quartzito, cuja origem geográfica não foi determinada.